depoimento:(tal qual vai aparecer no livro do Eddy Stols e da Luciana Mascaro)
Como fui parar na Bélgica e me tornei cineasta
Como se sabe, em 1964 houve, no Brasil, um golpe de estado, e o estabelecimento da ditadura militar que duraria 21 anos. Por minha parte, em 1964 eu estava nos Estados Unidos, porque tinha me tornado órfã aos 15 anos, e tinha sido enviada pra viver com minha tia americana. Não gostava dos Estados Unidos. Em 1965, antes dos 20 anos, voltei pro Brasil. Comecei a cursar a USP, em psicologia, e iniciei estudos de crítica teatral na Escola de Arte Dramática, precursora da ECA. Passei a viver com um colega da Escola de Arte Dramática. Um dia, em 1967, participamos de uma passeata contra a ditadura, e a nossa foto, na primeira fila da passeata, saiu no jornal O Estado de São Paulo. Sabíamos que as fotos feitas durante passeatas eram utilizadas pelo DOPS para identificar as pessoas que se opunham à ditadura. Compreendemos de que deveríamos sair do país. Meu companheiro, Luis Otavio Barata, então decorador de teatro, tinha encontrado, na Bienal de São Paulo, um decorador tcheco famoso, Josef Svoboda, e tinha lhe declarado que gostaria de aperfeiçoar seus estudos com ele. O Svoboda lhe tinha dito “venha”. De maneira que o lugar lógico para irmos, quando saíssemos do Brasil, era a Tchecoslovaquia. Esperávamos sermos acolhidos de braços abertos.
No entanto, quando chegamos, nos assinalaram que deveríamos aprender o tcheco durante dois anos, e que as escolas de tcheco estavam lotadas, devido ao esforço de guerra, pra ajudar o Vietnã do Norte. As escolas estavam cheias de vietnamitas. Nos aconselharam de fazer o pedido de admissão em março do ano seguinte, isto é, 1968. Nos lembramos de uma conferência que a Heleny Guariba tinha dado na EAD. Ela tinha falado de seu estágio com o diretor de teatro francês Roger Planchon, e de um outro estagiário, belga, diplomado de uma boa escola de teatro em Bruxelas, o INSAS. Foi assim que resolvemos ir pra Bruxelas. Chegamos na véspera do vestibular e, por não sei que milagre, fomos ambos aceitos. O nosso francês, sobretudo o meu, não era extraordinário. Após um ano no INSAS, o Luis Otavio, hoje falecido, voltou pra Belém de Pará, de onde era oriundo, e onde se tornou um homem de teatro conhecido. Eu, tendo descoberto a edição de cinema, pedi uma transferência pra seção de continuidade e edição de filmes do INSAS.
Naquela época, o Consulado do Brasil ficava na Antuérpia. Eu ia pra lá unicamente pra renovar o passaporte, e não botava nunca os pés na Embaixada. Os dois funcionários na Antuérpia, um deles o Silvio Moreira, que continua na Embaixada, eram simpáticos, mas, como todos os brasileiros na Bélgica, eu morria de medo de aparecer por lá. Aliás, conhecia pouquíssimos brasileiros aqui. Era muito paranóica, morria de medo dos delatores da ditadura. Por sinal que não voltei pro Brasil até o fim da ditadura, e a anistia. Bruxelas mudou muito, desde 1967. Na época, parecia um vilarejo de província. A mentalidade era bastante racista. Até eu aprender o francês corretamente, era um pouco maltratada ou ignorada nas lojas. Tínhamos problemas pra alugar um apartamento – em todo lugar estava anotado “étrangers s’abstenir”, isto é, “estrangeiros, abstenham-se”. O fato de Bruxelas tornar-se a capital da Europa, assim como a chegada de milhares de estrangeiros, modificou a mentalidade, e aumentou a diversidade cultural da cidade.
Tive muita sorte na vida profissional. Já minha mãe tinha me falado da importância de um trabalho bem feito. Investi-me no trabalho o quanto pude, chegando a negligenciar um pouco minha vida privada. Graças ao conhecimento da língua alemã (meus pais tinham imigrado no Brasil da Alemanha), aprendi o flamengo bastante facilmente. Atuei, em francês e flamengo, como continuista, editora, assistente de direção e diretora de filmes. Pude trabalhar com diretores belgas conhecidos, tais como Benoit Lamy, Harry Kümel, Marion Hänsel, Stijn Coninx, Jaco Van Dormael, Hugo Claus. Pratiquei meu oficio, igualmente, em outros países europeus, e fui responsável da continuidade de dois filmes nos Estados Unidos. Tive a honra de receber a distinção honorífica de Cavalheiro (não Dama) da Ordem de Leopoldo II, por minha contribuição ao cinema belga. No entanto, o trabalho pelo qual me sinto mais realizada, que me toca mais profundamente, é o meu documentário “Brasileiros como eu”. 9 de julho de 2012
Brasileiros como EU Susana Rossberg -2008
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aos interessados em ver o filme contactar: susana.rossberg@skynet.be